Eu queria ter uma história bonita para contar, daquelas que nos envolve como o abraço de um amigo de infância, sabe? Eu nem tenho amigos de infância, talvez nem infância. Já quis, em muitos momentos da vida que me transpassou, ‘desligar’ meus sentimentos, minha humanidade, para parar de doer. Esfriar. Parecia ser mais fácil. Ainda bem que não fiz isso.
Há pouco tempo atrás, eu havia percebido que algo “cognitivo” havia mudado em mim, hoje posso dizer que ali, eu já havia começado a perceber realmente o meu TPB. Sabe quando você só percebe que perdeu a chave do carro quando vai abri-lo? Então, só quando eu realmente quis tomar cuidado para não machucar alguém, foi que senti realmente a força descomunal do descontrole biológico no corpo, o emocional desembocando no comportamental. Percebi que eu não tinha as chaves da porta. Só quando me importei de verdade, enxerguei o desequilíbrio que não era minha opção.
Bom, ando me rastreando e percebi que tem algumas lembranças que ainda não dou conta de chegar nelas, passei reto, ainda não consegui olhar ali. Talvez eu não consiga na real. Quando tentei, me senti dentro do inferno. Olhos, rosto e a pele do pescoço ficaram quentes. Monólogo dói. Às vezes me sinto a própria dor. Mas sei que se eu não olhar lá, cairei no mesmo lugar do passado em que todos fingiam nada acontecer, ao invés de me protegerem. Eu tenho que me proteger dessa vez.
Bom, é difícil se descobrir portadora dos ‘impulsos descontrolados’ e depois disso saber discernir numa boa o que é, e o que não é impulso, o que eu não deveria fazer, e o que eu deveria sim fazer. Conheço muitos por aí que por excesso de cuidados perderam grandes amores ou chances na vida por medo.
E se foram os meus impulsos que salvaram a parte que resta de mim?
Linspector avisou um dia: cuidado com os defeitos que se corta, você não sabe que parte sua é feita deles. Por falar nessa deusa, estive pensando muito nela e em tudo o que eu já li dela, certeza que ela era uma border girl, certeza! E se o poeta realmente é do tamanho de sua dor, me intriga imaginar o que quebrou Clarice =(
Estou fazendo alguns exercícios que a terapeuta me passou (e que me surpreenderam) para reconhecimento do que sinto: nomear o que eu estou sentindo toda hora e, procurar em que parte do meu corpo o sentimento reflete. A parte mais difícil é o não fugir, para poder sentir e aí sim tentar identificar o que é. De cara sempre procuro uma válvula de escape para não sentir. Comecei a me policiar nisso, mas aí começam a vir as dúvidas: o que, de tudo o que eu faço, é válvula e o que é verdadeiro para mim? Para ir ao porão do subconsciente tem um labirinto na entrada.
Sigo na saga de descobrir feridas e todas as dores de que sou feita e remendada… e vamos lá, prometi falar aqui sobre algumas observações que fiz quanto ao que sinto. Sobre os três grandes grupos de sentimentos tortos que identifiquei, nesse inferno que eu descobri carregar. E por falar em inferno, em meio aos meus estudos sobre meus pensamentos, esbarrei com essa frase, e foi paixão a primeira lida:
“Eu estava no inferno (…) e fiz uma promessa: quando eu saísse, eu iria voltar e tirar os outros dali.”
Essa é a transcrição traduzida de um relato feito pela PhD. Marsha M. Linehan, que aos seus 68 anos de idade decidiu compartilhar com o mundo sua história de sofrimento e superação durante um pronunciamento no Institute for a Living. Ela é a criadora da Terapia Comportamental Dialética (DBT), desenvolvida originalmente como um possível tratamento para indivíduos suicidas crônicos com critérios para Transtorno de Personalidade Borderline, e agora reconhecida como “padrão-ouro” para tratamento borderline.
A Dra. Linehan aprendeu pelo caminho difícil, e cumpriu sua promessa. Ela desenvolveu seu método para tratamento borderline SENDO UMA BORDERLINE. Certamente sua experiência pessoal de aceitação e superação se iguala à sua capacidade acadêmica. Para mim, além de suas contribuições técnicas e científicas, é louvável a coragem da professora em tornar público relatos tão pessoais, e, alguém poderia dizer, perturbadores. E esse talvez seja um de seus grandes méritos, mostrar o caminho que ela mesma fez para sair “daquele inferno”.
Ao observar minhas próprias experiências e identificar os grupos de sentimentos que me afetam, estou lançando luz sobre os cantos da minha mente. Os três grandes grupos que identifiquei em mim são:
Flutuação: Eu oscilo de sentimentos (sim, sentimentos, caberia a palavra ‘humor’, mas está mais para o sentimento mesmo, diferente de uma TPM, por exemplo) várias vezes ao dia, sem motivos aparentes.
Intensidade: Quando eu sinto algo com motivo, há um estresse do sentimento em movimento. Quando tenho motivo real e palpável, minha tristeza dobra de tamanho, minha raiva ferve o dobro da temperatura, minha vontade vira soldado, minha dor vira sangue, minha alegria se torna euforia e assim por diante.
Dissociação: Para mim talvez esse seja o pior, que ainda estou tentando entender. É quando algum sentimento do grupo “intensidade” passa pela portinha quebrada do cérebro e ele entende tudo errado. Aí, o medo vira raiva e defesa, alegria vira tristeza, paz vira medo, e assim por diante.
Nunca estive mais isolada do que hoje em toda a minha vida, longe de tudo o que amo. Mas lágrimas só são inválidas quando nada aprendemos. Estou saindo do meu próprio inferno e, no processo, também vou buscar uma maneira de estender a mão para aqueles que possam estar lutando nas mesmas trevas… pois tenho muito para falar, muito para sentir, nessas buscas por tesouros internos de mim.