“Mamães Rebornes” e “Therians” são fenômenos atuais que, à primeira vista, podem parecer excêntricos ou patológicos. Contudo, nosso riso rápido pode ser fútil diante de algo mais profundo: um sintoma coletivo. A pergunta é: o que esse sintoma nos diz sobre o mundo que estamos construindo?

Essa reflexão levanta questões sobre afetos, valores, vazio existencial, solidão, pertencimento, construção de identidade e o que é ser humano. Vivemos tempos em que o real e o simbólico se entrelaçam com mais liberdade – e mais desespero. Onde termina a “graça” e começa o sofrimento psíquico, a desregulação emocional, a substituição da realidade?

Não se trata de institucionalizar o diferente, mas de garantir que ele não esteja gritando por socorro enquanto todos acham divertido ou abominável. O que as famílias, escolas, sistemas de saúde e espaços de cultura deixaram de oferecer? Um Estado que zela pela saúde pública precisa estar atento a esses fenômenos como indicadores de demandas importantíssimas, e até históricas.

Nossa história registra casos de doenças psicogênicas em massa, como a coreomania ou “peste da dança” de Estrasburgo, em 1518. Nesse surto coletivo, uma mulher chamada Frau Troffea começou a dançar ininterruptamente em praça pública. Em um mês, cerca de 400 indivíduos estavam envolvidos. Alguns dançaram até a morte por exaustão ou ataques cardíacos.

Esses episódios são atribuídos a fatores sociopsicológicos ligados a estresses coletivos por rupturas culturais e dificuldades de sobrevivência. Antropologicamente, hoje, configuraram-se novos modos de viver, pertencer e existir. Pode parecer que não, mas há dor quando a alma já não reconhece sua forma.

Desde Platão, sabemos que o ser humano é uma alma em busca de forma para sua manifestação no mundo físico. Esses novos modos de criar identidades simbólicas, como mães de bonecas e até animais, são gritos da psique em busca de forma. Não são simples performances — são construções arquetípicas. A mãe que cuida de um boneco realista talvez busque, inconscientemente, integrar o arquétipo da Grande Mãe ferida em uma sociedade que banalizou o cuidado.

Jung nos lembrou que o inconsciente encontra formas de se manifestar quando é silenciado. Boécio, da prisão, compreendeu que o maior cárcere é a alma desorientada, que esqueceu sua dignidade. Se a realidade em que vivemos tornou-se inóspita à alma — fria, fragmentada, sem tempo para o cuidado subjetivo e até espiritual — não surpreende que a psique busque outras formas de habitar o mundo.

A racionalidade moderna exige coerência, produtividade e identidades fixas. Mas a alma humana, como dizia Plotino, é movimento, é retorno à origem. Quando essa origem é perdida, ela se reinventa — muitas vezes no limiar entre o símbolo e o sofrimento.

Os “Therians” evocam o mito ancestral do ser híbrido — metade humano, metade besta — que habita entre o instinto e a razão. Uma forma inconsciente que rejeita a racionalidade exaustiva de mentes truncadas em uma sociedade de personas digitais, que, sem coerência com a realidade do indivíduo, produz a dor da autoconsciência.

Hoje, o sofrimento psíquico não é exceção — é regra. Talvez os comportamentos que hoje viram memes sejam almas construindo mundos paralelos onde ainda seja possível abandonar pesos e expectativas e apenas ser, apenas não doer. Se essas manifestações são tentativas inconscientes de restaurar sentido, ignorá-las é um erro: a alma coletiva está falando algo.

O perigo está na negligência. Se não oferecermos redes de apoio, serviços de atenção psicossocial e políticas públicas que incluam formação educacional subjetiva em valores humanos, transformaremos sofrimento em espetáculo. E isso, sim, é desumanizante. A diversidade de pensamento e identidade é um reflexo da complexidade humana e a autoexpressão é um direito, mas a promoção da saúde mental é um valor humano fundamental.

Indivíduos que perdem a referência e adotam identidades que os distanciam da experiência humana compartilhada provocam impacto significativo na coesão social e no bem-estar coletivo em todos os setores. E isso é um problema seu, meu, dos nossos filhos, de todos nós. É essencial que a sociedade ofereça suporte compreensivo, ao mesmo tempo em que aborda possíveis implicações de saúde. Não podemos nos divertir com sintomas de um mundo ferido.