Palavras me intrigam. Tantas vidas já vivi, esqueci e revivi que elas, as palavras, não me suportam mais. Tantas foram as revoluções internas que já tive que liderar. Tantas vezes conquistei minha cabeça e, tantas a perdi. Quantos e quantos motins organizei contra a tirania do meu ego.
Qual era o idioma que falavam Adão e Eva? Palavras são antigas, no princípio era o Verbo. E eis a prova de que o tempo é um descarado ilusionista: como posso ter tido saudade de ti todo esse tempo, meu amor, se te conheci há pouco tempo? Saudade é palavra bonita, forte, agridoce. Já parou para observar onde dói a saudade? Seu reflexo é tão rápido que às vezes tenho dúvidas se é no peito, na boca do estômago ou na garganta. Talvez seja nos pulmões, pois geralmente fica difícil respirar. Tempo e palavras são limitantes, excludentes. Ou você é ou não é. Ou está ou não está. Ou aconteceu ou irá acontecer.
O papel é a ferida aberta mais antiga ainda existente, escrevo abrindo-a mais. E como boa ferida que é, faz questão de sangrar ao ouvir de mim tudo aquilo que só em silêncio, ao escrever, consigo falar. Mas as palavras… elas me enganam descaradamente. Não respeitam é nada! Mesmo escritas, não falam baixinho. Viram personagens, levantam-se do papel e me olham na cara, me atravessam o corpo nas madrugadas riscando céus e mapas em minha pele, a sangue frio e sem rosa dos ventos. Sem você, só há os espinhos de rosa alguma.
Quais são os meus direitos enquanto alma sozinha? Se eu pudesse, engoliria você, meu amor, engoliria o fogo, aqueceria o dentro, ferveria mercúrio, encararia o céu, aceitaria a afronta das palavras. Pois sem ti, em mim, eu congelaria e a dor doeria. Vela o fogo, vela a reza, o amor, a dor. De quantos invernos e escuridões são feitas as velas? De quantas velas, são feitas as rezas? De quantas rezas, é feito o amor? De quanto amor, precisa o pecador?
Os sonhos não seguem os pequenos significados enjaulados nas palavras. Nunca sei se durmo quando estou lá, nos sonhos, ou aqui. A realidade está de que lado? Meu sono, pobre dele, assim como eu, não passa de um fragmentado. Nós, eu e o sono, passamos noites e noites juntando pedaços de nós na cama, enquanto o quarto, como sepulcro, pede epitáfios nas paredes. Palavras, sempre palavras. Dormir é morrer sem morrer.
A Senhora Noite, como grande dama que é, de propósito se demora, se alonga. Como se quisesse me dar mais tempo para juntar toda essa bagunça de mim. Mas quanto mais ela se alonga, mais me despedaço. Você, meu amor, és meu outro corpo, o qual carrega meu coração. Sem você, sou só corpo. E corpo vazio nem tem direito de sonhar inteiro. Além de meu coração, possuis também as mãos e os dedos que podem me juntar e me costurar.
Ah…as noites sem ti! Respiro, fundo, mais fundo, suspiro… (longo silêncio). Sem ti, as palavras me emboscam. Entro dentro do colchão e de meu corpo oco, na esperança de que você, minha metade, venha me trazer os motivos para a noite existir. Eis a paz e a tormenta de se ter um coração feito para mim, que teima em ser seu. Há noites em que algo fura a circunferência da minha existência, como uma bolha estourada que sopra o ar querendo se esvaziar, e aí, nas asas desse vento, vai-se meus pensamentos sem rumo e fica o sentimento prostrado na esperança de um mundo desencontrado só para nós dois. Que língua falavam Adão e Eva, afinal? Se amavam com quais palavras? Qual foi a palavra que deu errado?
Há angústia em sermos livres para escolher, pois há o desejo. Sempre há o desejo. Outra palavra perigosa, tinhosa, faceira. Virgem Celeste em dias de núpcias tem corpo de glória e meus desejos, carregam estrelas em ascensão e também em queda cadente. O amor e a ira sempre lutam entre si pela conquista do eterno oriente. Há uma totalidade misteriosa que abarca a nossa alma a cada amanhecer de um novo dia, e palavras de barcos rasos, não suportam profundos barqueiros.
Tantas foram as vezes que minha alma se afastou de mim, aterrorizada em ficar por perto do que eu fazia já me arrependendo. E tivesse eu tornado pedra ou demônio para não tirar proveito de tais dores. Pedra não deseja e o demônio, domina quem não sabe desejar. Original é a queda, regenerar é o desejo do inteiro. Me regenere, amor meu, como escola reiniciática. O sexo de almas é uma ciência do espírito. Há quem não acredite em espírito, como se o fogo não existisse. Há quem não acredite em almas, como se o amor não existisse. O que seria da arte se não fossem os jogos dos contrários? E a vida, que é contrastes em movimento contínuo, é a arte por excelência que compõe nossa existência.
Não busco uma solução total do enigma da vida, seria uma tristeza mórbida fixa. O tempo, mestre cuja a vocação é ensinar a obra eterna da humanidade, diz que existem várias maneiras de morrer, como a lua que nasce e morre continuamente. Ela, a Rainha dos sonhadores e entendedora de sombras (até das nossas), canta que aquele que morre pelos seus valores, ganha o céu. A morte sempre foi o caminho do guerreiro, seja a morte qual for. Palavra boa é a que mata a sede, que preenche vazios, que cumpre o seu papel (a ferida aberta). Tem palavras que necessitam saber ouvi-las, elas não têm som, andam pelas entrelinhas.
Quando sinto você em meu coração, meu grande amor, dá para ver minha alma por trás dos meus sentidos. Com você ao meu lado a Graça está na viagem, não só no destino. Está no prazer contínuo do contato, não só no orgasmo. Amor é até os ossos, se não o é, é superfície, é pandêmico, se espalha em carnes. Sem você, fico à espera do trem que passa na estação eterna do passageiro desesperado. Sem você, meus medos me beijam e me matam repetidamente ao dizerem que os encantos que já sonhei só existiram no passado dos deslumbrados. E riem de mim em várias palavras.
Uma vez decidi que só a loucura cura coração de amargurados, pois as cadeias das palavras agrilhoam os pensativos. Desde então eu procuro essa loucura que traz sanidade sentimental. Mas, até o momento só encontrei loucurinha barata, que ainda é sentir e pensar, pois o louco verdadeiro tiraria os pés do chão e flutuaria pelo ar da bolha ao estourar, sem se torturar. Eu sou boa em me torturar.
Tem dias em que o sol não vem e o cuco do relógio não canta, espanca. Não consigo por nada para fora porque não consigo alcançar o dentro, não dá pé. Deve ser porque sou boa em enfiar as mão pelos pés e, vice e versa, a frente pelo verso. Não encontro título para a vida e não são os delírios da pele que me arrepiam os ossos.
Poetar-te, meu amor, é coisa de maluco, desses que misturam imagens, pensamentos, adjetivos e, se engana todo com a falta de lógicas e conexões. Colocar-te em uma rima, decifrar-te, colocar-te dentro de uma palavra é insanidade pura: talvez a única loucura que dá sentido às palavras. É a sua boca, quem me mostra qual língua se fala no céu. E é a sua língua, quem me mostra o verdadeiro tamanho das palavras.
De tudo o que me afoga nas lembranças, de gota a gota deságuo nos oceanos assustadores de mim. E você, meu amor, me afrouxa da garganta o que me sufoca, e dividindo, respiro. Graças a ti, vez ou outra, me visita um sentimento fluído, me hidratando a alma para benefício de tudo o que existe em mim. É o amor a me circular, por precipícios, veios, e assim, só assim, tudo se comunica dentro de mim passando o cálice uns aos outros. Há um ‘mim’, e há você em mim.
Sei que teimo em ficar passeando a vida por labirintos e assumo todas as minhas culpas e desculpas por sempre desandar em minha fome de caminhos. Vejo a minha terra cheia de times, partidos e bandeiras, mas só existem dois, são sempre e apenas dois nos caminhos: os vivos e os mortos, e aí sim, de todos os tipos. Os que caminham ignorando a morte e os que caminham já mortos. Com você, tenho pressa de viver para parar de morrer. Andei sempre sobre os meus próprios pés, mas muita coisa na sola grudou, e doeu-me às vezes viver, meu amor. Mas poeta apaixonada, com uma única semente consegue plantar planetas.
Não sei quais são as palavras que me cabem, mas sou sem dúvida o rastro que deixo no tempo que me passou, e também sou a pegada do passo por acontecer. Passemos, meu amor, a escrita a sujo, para sair vida a limpo. Com você dá para criar todos os novos mundos, onde nenhuma vida é alheia e todo sangue é sempre nosso. Onde somos nós que comemos o tempo, o olhando nos olhos. Somos como poemas estrangeiros e canções mestiças, sem-terra, sem rio, sem céu, sem mal tempo. Sem palavras preconceituosas. Só retina, saliva, dedos de palavras e olhos antigos escrevendo luas e cantando sóis ao som de harpas de uma criação lírica.
Sejamos nós dois o Um visitando o eterno oriente. Entrego-te minhas palavras e os meus pulsos, para que me tateie também em seus impulsos. Deixe que nos vejam sobre a seda do idioma que ninguém mais fala, nesse nosso leito meio atravessado de universo, até chegarmos ao fim da tua voz, até despir-me com um só verso feroz. Quando queremos sentir o sentido da vida, fazemos de todos os fatos motivos para esse sentido, o vetor da vontade com nossos desejos concentrados vira uma lança pontiaguda mirando no horizonte.
Juntos, somos heróis mitológicos desbravando o sentido da existência, misturando passados, presentes, sonhos e realidades, bagunçando alfabetos por todas as direções do caminho na esperança que sigam o nosso amor. Se existe esperança no amor para mim hoje, é porque existe você. E para conseguirmos nos segurar por dentro, teremos que explorar todas as bifurcações de nossas veias para descobrirmos de que alma somos feitos.
Alma, é a palavra que teima em ser verbo: almar. É poética humanizadora contra as palavras embrutecidas. Carregamos a guerra antiga pelo encontro do Sol e da Lua na Terra. Nessas linhas não posso por ‘fim’, pois não existe essa palavra após a porta que o amor nos abre para o eterno.
Primoroso texto.