Hoje eu não estou poética, esse lado de mim está cansado hoje, mas, escrever está fazendo parte do processo, pois escrevendo penso, pontuo, sinto, enxergo e gravo para não esquecer. “Escrevo, logo existo”. Então, vai sem rima mesmo, porque em ritmo o tempo tem sido imenso.
Primeiramente, quando identificamos a raiz real de nossos tormentos, a sensação é como mudar os trilhos para que o trem atravesse para o outro lado. Atravessa todo, barulhento. O trágico começa a ganhar matizes, embora possam ser nuances desagradáveis.
Bom, o médico me explicou que carrego a disfunção em minha testa (a parte do cérebro onde ela está), e que perturbações emocionais fortes causam desarranjos químicos na formação de nosso estranho labirinto chamado cérebro (além de toda a parte genética, a minha única herança familiar). Aí, continuou explicando que traumas profundos na mente em formação perturbam a programação biológica. Confesso que como filósofa, isso tudo é algo bem instigante, embora eu não tenha compreendido nada no momento, pois parei de escutar a partir da palavra “transtorno”.
Mas tem uma coisa que ficou clara instantaneamente: dois estados de mim travando uma batalha na fronteira desde sempre. E quando digo isso, não é que existem duas formas de pensar, de maneira alguma. Mas sim, que existem dois estados emocionais bem distintos. Talvez para mim seja na verdade um “sinto, logo existo”.
Me lembrei de várias vezes fugir ou ignorar um problema que eu sabia que seria intenso, dizendo: “melhor eu não entrar nesse lugar, pois sei como é difícil de sair de lá, eu sempre demoro muito para sair, não façam eu entrar aí.” É impressionante hoje, ver claramente todas as táticas que eu já havia criado contra essa minha disfunção sozinha, sem saber dela. Mas a questão é que fugir dos problemas para não sentir, não resolveu nada.
O louco de tudo isso é que, minha consciência está muito alerta, tipo polícia federal investigativa. Ando me pegando no pulo, quero ver eu puxar meu tapete agora! Pego-me no contrapé. Observar a nós mesmos minuciosamente revela nuances significativas entre as brechas de tempo que passam despercebidas por todos no dia, exceto por você mesmo. São pequenas pausas de solidão, bem pequenas, aquelas após terminar uma coisa, ou antes de começar outra, ou do fim de um telefonema, ou o tempo de sentar-se na cadeira. É rápida, mas está ali, tem essas pausas o tempo todo, já reparou? É uma experiência peculiar, reviver passados que agora ficam vindo a mim do nada – no carro, no banho, no trabalho, atravessando a rua.
Teve uma lembrança, na qual me vi de fora de mim, em um carro, e meu pai do lado de fora, chutando-me, empurrando-me de um lado do banco para o outro com o pé enquanto se segurava na porta. Eu, apenas uma criança. Percebi essa cena de um ponto de vista distante, de fora, como telespectador. Compreende a loucura disso? Visualizei a cena, vi o eu criança e experimentei profunda dor, empatia e compaixão por aquela inocência perdida. Não se faz isso! Poxa! Reviver essas memórias tem sido angustiante, pois são lembranças que não estavam esquecidas, mas sim ignoradas, eu virava o rosto delas para não sentir, dizendo que “tá tudo bem”. Só que agora eu olhei para aquilo.
Inúmeras outras memórias semelhantes surgiram, como um dia em que meu pai entrou na cozinha e me surpreendeu, do nada, com um tapa em meu rosto, fazendo-me rodopiar e derrubar as batatas que eu estava descascando. Eu e as cascas no chão. Motivo? Estava passando Funk no rádio da cozinha e ele disse que não era para eu ouvir essas coisas. Levei um tempo para compreender o que havia acontecido ali no chão, mas, finalmente, a sensação de uma mão atingindo meu rosto ficou gravada. Levei um tempo para sentir a dor no rosto, no dia e agora. E não! Não está tudo bem!
Me veio também um outro episódio em que apanhei tanto dele, recordo-me de um breve flash durante a surra, quando eu caí no sofá e ele me puxou pelo pé, fazendo-me cair de costas no chão. A dor na parte de trás do meu quadril atingindo o chão foi intensa, que urinei instantaneamente. Eu tinha dezesseis anos. Esse dia foi longo e culminou em hospitalização e intervenção policial. Como sempre, terminou com todos fingindo que nada havia acontecido. Exceto pelo medo que todos compartilhavam dele em nosso próprio lar. Minha mãe, coitada, sofria, tentando nos tirar dessa situação. Mas, não virei o rosto. Olhei para a lembrança. Senti e quase morri várias vezes esses dias.
Sim, pesado. E admitir o peso do que aqui se lê em minhas palavras é reconhecer o fardo de minha própria escrita. E reconhecer o fardo da escrita é uma maneira sutil de sugerir que não devemos ousar abordar esses temas. Portanto, se for muito fardo, encerre sua leitura aqui e deixe estas palavras na penumbra do ciberespaço.
Bem, esses foram apenas alguns dos inúmeros, inúmeros e inúmeros destinos e lugares que percorri, enquanto a minha agenda avançou e avança no compasso do relógio rápido, vencendo os meus compromissos diários. Penso que esses exemplos de viagens ao passado são suficientes para enfatizar a relevância de você border, viajante da fronteira, mergulhar em sua própria história e contemplar aquele local, momento ou pessoa que você evita encarar, que você vira o rosto. Os sentimentos que você deliberadamente silenciou para não vivenciar, que se “desligou” para não os sentir, olhe-os. Pois talvez, reparar ou mesmo conceber novos equilíbrios emocionais comece com o ato de encarar aquilo que os fragmentou.
Ontem foi um dia de lágrimas soltas, daquelas que você nem faz careta para chorar, elas saem desinibidas, fofas, e isso sim tá tudo bem. E reforço o que eu disse em outro texto: basta reconhecer os abismos que nos compõem para nos aventurarmos nas profundezas de nossas almas.
Além disso, ao me contemplar e explorar os recônditos dos meus sentimentos, para confirmar se de fato carrego o que outros afirmaram que reside em mim (sim, por vezes, encontro-me tentando me persuadir de que “não tem relevância, deixe isso de lado, você não tem nada disso aí não”), descobri que sim, minhas emoções flutuam ao longo do dia, independentemente das circunstâncias. São como suaves nuances de alegria seguidas pelo vazio do nada, angústia. Às vezes, o vazio é breve, vem do nada, encosta e sai. Mas as vezes ele não é só um vazio mas um vácuo. É no centro do peito, uma sensação de alerta constante, esperando algo acontecer, mesmo quando não há motivo aparente.
Portanto, percebi que convivo com todos os aspectos do CID borderline desde sempre, mesmo acreditando que isso seja apenas o “eu” sendo o “eu”. A realidade é que, o modo que sinto a vida, não é necessariamente a norma para todos. E é gratificante perceber que a minha consciência, o “eu” a me observar de fora, não retrocede! Ela resiste e se recusa a abandonar o que já conquistou em mim até agora.
Em uma próxima ocasião, quero e vou falar em detalhes os problemas que identifiquei claramente em meus sentimentos, pois consegui dividi-los em três grandes grupos. Quero deixar claro que estou em um processo de autodescoberta, priorizando a confiança no que estou vivenciando e sendo orientada. Ainda não tenho certeza se esses três grupos de problemas emocionais que mencionei, por exemplo, já foram registrados e estudados, e com certeza vou procurar saber no devido tempo. O que compartilho aqui reflete apenas o meu processo, de dentro. Quem sabe eu desenvolva um estudo do pensamento border visto por dentro da fronteira… por hora, preciso primeiro me achar.
A terapeuta recomendou que eu traçasse palavras, já que ando não querendo falar muito, pois essa é uma maneira, inclusive, de comunicar silenciosamente ao meu círculo de suporte (sabe, aqueles que ficam do nosso lado mesmo quando o bagulho fica louco) o rumo das minhas jornadas, poupando-me de repetições incessantes. Mal posso esperar para concluir essas peregrinações ao pretérito, pois percebo que desta vez estou forjando uma força singular, uma habilidade de domar minha intensidade, para vivenciar uma vida memorável daqui em diante (mais do que já estava sendo), com todo o tempero, calor e vida que guardo em minhas entranhas.
A Jornada do Diagnóstico – Diário de Bordo(er)
Admiro sua arte e seu poder de motivar as pessoas com nossos obstáculos